“Não vamos pagar” é uma deliciosa comédia que está em cartaz no Teatro do Sesi, no centro do Rio, até 14 de maio. O texto foi escrito pelo casal italiano Dario Fo (Prêmio Nobel de Literatura em 1997) e sua esposa Franca Rame (1954-2013) em 1974. Na história, duas mulheres se envolvem em um protesto de donas de casa contra o aumento dos preços dos produtos dentro de um supermercado, levando para casa alguns produtos sem pagar. A crise na fábrica onde trabalham seus maridos e as buscas da polícia na vizinhança estruturam uma situação cheia de entradas e saídas, perseguições e segredos revelados em muita confusão. O público gargalha! Dirigida por Inez Viana, a comédia tem Guilherme Piva, Elisa Pinheiro, André Dale, Zéu Brito e Virgínia Cavendish no elenco, essa última a idealizadora do projeto. O período de discussão política que o Brasil vive nesse período é contexto ideal para assistir a esse excelente espetáculo. Nele, o riso não substitui a reflexão, mas talvez até a qualifique!
Texto delicioso de Dario Fo
“Non si paga! Non si paga!” foi levado à cena tão logo foi escrito por Fo e por Rame no grupo Colletivo Teatrale La Comune, fazendo muito sucesso na Itália e ganhando o mundo. No Brasil, sob o título de “Pegue e não pague”, foi dirigido e protagonizado por Gianfrancesco Guarnieri, em 1981, com Renato Borghi, Bete Mendes, Regina Viana e Herson Capri no elenco. Cinco anos depois, Dina Sfat (1938-1989) estava ensaiando “Ninguém paga, ninguém paga!” quando descobriu-se doente. A montagem, dirigida por Celso Nunes, foi a última produzida por ela, sem infelizmente a sua atuação.
A peça começa com Antônia (Virgínia Cavendish) contando para sua amiga Margarida (Elisa Pinheiro) o que aconteceu enquanto fazia compras no supermercado. O nova taxação de preços irritou as donas de casa presentes, um tumulto começou e o local foi saqueado. Antônia, assim, trouxe vários produtos roubados, alguns dois quais estranhos a sua rotina: como comida para cães e alpiste para canário. Agora, ela precisa esconder esses mantimentos, pois seu marido João (Guilherme Piva) é um homem de valores muito restritos e não gostará nem um pouco da história. Embora relutante, Margarida topa ajudá-la, mas a coisa se complica quando inesperadamente Luís (André Dale), seu marido, volta do trabalho mais cedo. Começa aí um corre-corre entre as esposas e o marido e de todos contra as investidas da polícia (Zéu Brito), em que sobra força, mas falta cérebro.
É em João que a maior transformação da história acontece. No original, seu personagem foi escrito como uma espécie de comunista conservador: determinado a lutar pelas causas sociais e definitivamente contrário ao consumismo capitalista e à desordem. Em questão, está, de um lado, o ideal filosófico de sociedade desapegado das realidades cotidianas representado por ele. De outro, as dificuldades do dia a dia - contas vencidas, dinheiro escasso, comportamentos em transformação – representadas por Antônia. Na tradução de José Almino, a referência à sociedade comunista (provavelmente clara aos espectadores italianos do meio dos anos 70) desapareceu. Em seu lugar, entrou uma concepção mais pantanosa do personagem que reflete a complexidade dos nossos dias e da nossa cultura. É quase impossível, afinal de contas, identificar um governo de esquerda ou de direita por aqui.
Assim, o texto de “Não vamos pagar” enfrenta hoje um dilema que talvez não tenha sido tão problemático há 40 anos: em que circunstância o roubo é permitido? É enorme o mérito dessa montagem em enfrentar essa difícil questão com tanto êxito. Ela substitui, através da comédia de vaudeville, a ação específica que deu origem à toda a narrativa pelo conjunto de valores que a circunda. Em cartaz desde outubro de 2014, quando ainda estavam quentes as reinvindicações sociais do inverno de 2013, eis aqui uma proposta divertida e inteligente que tem tudo a ver com o momento atual.
Comédia imperdível!
A direção de Inez Viana, assistida por Luis Antônio Fortes, tem resultado excelente sobretudo no ritmo ágil com que a narrativa se estabelece. As cenas são fluídas, as situações claras, os contextos sempre dispostos a surpreender e manter firme a atenção do público. O cenário de Omar Salomão, talvez atendendo à necessidade da peça em abandonar o realismo mais político e falar de realidade através do nonsense, abre campo para a teatralidade. A casa de João e de Antônia é representada por tapumes de madeira e módulos que, dentro do conceito, têm várias funcionalidades. O figurino de Juli Videla dá conta do realismo, a direção musical de Ricco Viana auxilia no ritmo e no estabelecimento da graça e a iluminação de Renato Machado enaltece os aspectos visuais, participando da narrativa de modo invisível nas cenas mais realistas e aparente quando o conceito estético da peça precisa ser ratificado.
Todos os trabalhos de interpretação são ótimos. Zéu Brito (sargento, capitão e pai de Antônia) investe mais na caricatura, Guilherme Piva (João) no naturalismo. Virgínia Cavendish (Antônia), André Dale (Luís) e Elisa Pinheiro (Margarida) equilibram a encenação ora mais para um lado, ora para outro. Em todos, vê-se claramente um jogo profícuo entre si e com o público que é vibrante. Ele é responsável juntamente com o todo pelos muitos méritos do espetáculo.
Muito raramente se encontra uma comédia tão boa quanto “Não vamos pagar” em cartaz no Rio de Janeiro apesar da programação teatral daqui ter outra fama. Essa peça é imperdível!